AÇÕES NECESSÁRIAS PARA IMPEDIR OS RETROCESSOS DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO
A CNTE é contra a Reforma do Ensino Médio em razão do método antidemocrático e do conteúdo privatista e cerceador de direitos impostos pelo governo golpista de Michel Temer, através da Medida Provisória (MP) n. 746, posteriormente transformada na Lei 13.415.
A ausência de debate social sobre um assunto de interesse de milhões de brasileiros/as – e do próprio projeto de nação inclusiva -, por si só, retirou a legitimidade da antirreforma educacional. Pior ainda é seu total alinhamento às medidas de ajuste fiscal, em especial à Emenda Constitucional (EC) n. 95, aprovada no final de 2016, que visa claramente limitar os investimentos públicos nas escolas e universidades públicas, sucateando essas instituições e investindo cada vez mais nas parcerias público-privadas e na expansão da rede particular nos diferentes níveis, etapas e modalidades educacionais. Lembremos que a EC n. 95 suspendeu por duas décadas a vinculação constitucional de recursos da União para a educação e congelou os investimentos sociais, inclusive os educacionais, por igual período.
Neste momento, o país começa a vivenciar a fase de implementação da antirreforma do Ensino Médio, amparada por forte propaganda governamental, pelo endividamento estatal e pela submissão da pauta educacional às agências financiadoras da reforma, sendo que nesta primeira etapa serão contratados cerca de R$ 1,5 bilhão por meio de empréstimos. E isso tudo sem ter debatido e aprovado a base curricular do ensino médio, fato que revela a falta de cientificidade desse projeto que se anuncia falsamente inovador e revolucionário à sociedade.
Embora muitas sejam as dúvidas dos próprios sistemas de ensino em relação à implementação de mais essa antirreforma golpista, os trabalhadores e as trabalhadoras em educação e a comunidade que frequenta e defende a escola pública não podem titubear frente às ameaças de retrocessos que já se fazem perceber em decorrência da medida autoritária aprovada pelo Congresso em 2017.
E este documento, na forma de orientações aos sindicatos da educação, aos estudantes, pais, mães, responsáveis e gestores públicos comprometidos com a qualidade social da educação pública, gratuita, democrática, laica e de acesso a todos e todas, tem por objetivo chamar a atenção da sociedade para pontos sensíveis dessa proposta educacional, que não se alinha aos anseios da maioria da população e que tende a retroceder o processo de inclusão social e educacional vivenciado pelo país na década anterior.
Neste sentido, a posição da CNTE continua sendo de rejeição da reforma do Ensino Médio, quiçá através da revogação da Lei 13.415, no momento em que a democracia for reestabelecida no país, em razão das seguintes questões, além de outras:
1. A antirreforma não garante o acesso universal à Escola de Tempo Integral, muito menos à Escola Integral defendida pela CNTE, pautada em currículos e experiências coletivas e acadêmicas sintonizadas com a comunidade, a cidade, o país e o mundo. Na verdade, os convênios que serão firmados entre os Estados e o Ministério da Educação – MEC, através do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral – EMTI, instituído pela Portaria/MEC n. 727, de 13 de junho de 2017, não garantem a inclusão de todos os jovens nas escolas de tempo integral, sendo ofertado número inferior de matrículas em comparação ao que já vinha sendo atendido até 2016 com a ajuda do governo federal! Portanto, não haverá ampliação de matrículas, e sim o inverso. O gargalo de acesso na escola de nível médio e posteriormente nas universidades poderá ser agravado. Ademais, as condições de acesso ao Programa são marcadas por contradições que situam o EMTI no espectro de um projeto de “escola de referência”, tão combatido em períodos anteriores.
2. Há fortes indícios de que o Programa EMTI já esteja promovendo a exclusão de milhares de estudantes não apenas da etapa do ensino médio, mas também do ensino fundamental, na medida em que as escolas participantes passam a atender exclusivamente uma parcela das matrículas somente do ensino médio, sem que se saiba para onde foram os estudantes não selecionados (do ensino médio) e aqueles que frequentavam turmas do ensino fundamental nessas mesmas instituições. Sobre essa questão inquietante, soma-se o fato de muitas escolas estarem sendo fechadas Brasil afora sob o argumento de novas “enturmações”, que certamente farão aumentar o número de estudantes por sala de aula comprometendo o trabalho docente e a qualidade da educação. Entre 2016 e 2017, o Brasil contou com menos 2.917 escolas de ensino fundamental, segundo informações preliminares do censo escolar. Trata-se de dado preocupante, pois associado a inúmeras denúncias de fechamento de escolas onde há demanda estudantil efetiva, demonstra uma possível prática ilegal e inconstitucional do Estado brasileiro de promoção da evasão escolar. Ou seja: o decréscimo das matrículas no ensino fundamental pode não estar associado apenas à melhoria no fluxo escolar e na diminuição da taxa de natalidade, mas sim na limitação das redes estaduais em atender apenas o ensino médio, em parte nas “escolas de referência” do EMTI, delegando as matrículas do ensino fundamental aos municípios, os quais muitos não terão condições de absorver essa demanda extra. Assim sendo, é muito provável que as ações economicistas de fechamento de escolas, levadas a cabo por estados e municípios, estejam promovendo de forma perversa a exclusão educacional.
3. A implementação de uma escola integral (ou de tempo integral) não pode prosperar sem a devida estrutura física, de recursos humanos, de materiais didático-pedagógicos e de projeto curricular que atendam aos anseios da comunidade e que possibilitem a máxima inclusão dos estudantes. Como aceitar uma proposta excludente e que não proporciona novos conteúdos, espaços e experiências de aprendizagens aos estudantes? A escola não será inovadora apenas pelo nome. É preciso garantir as condições para torná-la atraente, prazerosa e útil à vida dos jovens. E isso só será possível com amplo diálogo entre gestores e comunidade (estudantes, familiares, profissionais da educação, representantes de bairro) para que sejam garantidas as condições necessárias para o pleno atendimento escolar. Caso esse processo democrático não seja instalado e respeitado, a comunidade escolar deve rejeitar a implementação do EMTI, pois ele imporá ingerências que comprometerão o direito à educação de grande parcela da juventude.
4. Dentre as inúmeras contradições na aplicação da Portaria n. 727, e entre esta e a Lei 13.415 – não obstante o sistemático corte de verbas federais para o programa Mais Educação –, chama a atenção o fato de as “escolas de referência” não estarem sendo instaladas prioritariamente em áreas de vulnerabilidade social. O que se observa é o fechamento de muitas escolas, sobretudo de ensino fundamental nessas áreas específicas. E isso já atentaria contra o direto do estudante de se matricular em escola próxima a sua residência. Porém, o problema é ainda mais grave porque não se sabe se as matrículas dessas escolas fechadas estão sendo realocadas em outras. Mais uma incoerência refere-se aos pré-requisitos de profissionais que cada escola terá de dispor para assinar os convênios do EMTI, a exemplo de Coordenador Geral e de Especialistas em Gestão e Infraestrutura, quando o correto seria investir na gestão democrática e nos profissionais das redes de ensino. Um modelo de escola em tempo integral que dá ênfase à educação a distância também é algo bastante inconsistente e que expõe mais ainda a essência restritiva do currículo, sobretudo quando se autoriza computar telecursos de emissoras abertas de televisão no cômputo da carga horária dos estudantes.
5. Outra questão tormentosa e que exige a atenção de educadores, estudantes e familiares diz respeito aos atores responsáveis pela gestão das novas “escolas de referência” de ensino médio. Em muitos lugares, essas instituições estão sendo repassadas para a gestão de Fundações e Organizações Sociais de direito privado, em prejuízo da gestão pública. E aqui reside outro “canto da sereia” que precisa ser desmascarado. A escola pública tem o compromisso de atender a todos/as com qualidade – vide a Emenda Constitucional n. 59, que ampliou a obrigatoriedade do ensino para a faixa de 4 a 17 anos e a oferta gratuita aos que não concluíram a educação básica na idade apropriada. E se hoje a qualidade na escola pública está comprometida, isto se deve fundamentalmente à carência de investimentos públicos que deveriam atender a um padrão de qualidade, pautado no Custo Aluno Qualidade – CAQ (estratégias 20.6 a 20.8 do Plano Nacional de Educação – PNE). Em vez de aumentar os recursos na proporção estabelecida na meta 20 do PNE (equivalente a 10% do PIB), a antirreforma do ensino médio retoma a política de fragmentação do atendimento escolar, priorizando uma etapa escolar em detrimento das demais (da mesma forma ocorrida com o ensino fundamental quando da aprovação da EC n. 14, que instituiu o FUNDEF). Só que agora a situação é mais grave! Além de priorizar uma etapa escolar, o Poder Público investe na terceirização da gestão das escolas e até dos profissionais e na privatização de parte substancial do currículo, ponto este que será tratado na sequência. E administrar “escolas de referência”, seja através do Poder Público ou da iniciativa privada, onde os recursos são priorizados, inclusive dobrando a remuneração dos professores (em muitos casos), torna-se uma tarefa muito mais fácil do que ter que conviver com as inúmeras restrições financeiras, de pessoal e de estrutura física e pedagógica da maioria das escolas públicas. Portanto, é falacioso afirmar que a gestão privada dessas escolas será melhor que a gestão pública, pois as desigualdades no atendimento das matrículas nestas instituições em relação às demais escolas será gritante. E isso reforça o caráter excludente do EMTI.
6. Seguindo a lógica de atrelamento do Programa EMTI à política de ajuste fiscal deste governo golpista, a privatização de parte significativa do currículo do ensino médio é um elemento marcante na antirreforma. A Lei 13.415 concedeu à iniciativa privada a possibilidade de oferecer integralmente as áreas de conhecimento específico, que respondem por 57% do currículo, cabendo ao Estado, a priori, a responsabilidade pela parte geral (até 1.800 horas). Sendo que as únicas disciplinas de fato obrigatórias serão Língua Portuguesa e Matemática, com alta flexibilização das demais, que poderão compor as áreas específicas desde que todas sejam ofertadas pelo Estado.
7. Se, por um lado, a antirreforma restringe o acesso de todos os estudantes a uma base comum de conhecimento, por outro, ela não garante a oferta das cinco áreas específicas pelos entes públicos, podendo ser ofertadas até duas áreas! De maneira que muitos jovens, sobretudo de cidades do interior, poderão não concluir os estudos na escola pública, caso essa não ofereça as áreas específicas de maior interesse. Outra opção será procurar instituições privadas, conveniadas ou não com o Poder Público, ou se deslocar para outras cidades sem a garantia de transporte escolar ou qualquer outra ajuda de custo. E isto constitui mais uma forma de cerceamento do acesso estudantil à escola, que precisa ser revista pelos órgãos de controle estatal e não permitida pela comunidade.
8. Sobre a fragmentação da oferta escolar estimulada pela antirreforma educacional, ela age com maior incidência em duas áreas: a financeira e a curricular. O que leva o gestor público a achar que a ênfase na escola de tempo integral deve ocorrer apenas no ensino médio, quando pesquisas acadêmicas e de áreas da saúde revelam a importância das creches e pré-escolas integrais? E as crianças e jovens de menor idade, do ensino fundamental, não teriam elas mais condições para frequentar a escola integral do que a maioria dos jovens forçados a trabalhar devido as condições socioeconômicas de suas famílias? Onde se teve a oportunidade de fazer esse debate social que antecede qualquer reforma educacional? Não houve! A antirreforma foi imposta por meio de medida provisória! Não obstante isso, qual o projeto educacional para as escolas de ensino médio que não receberão a ajuda federal, ou seja, que não serão transformadas em “centros de referência”, precários ou não? Sobre o aspecto curricular, verifica-se o rompimento do conceito de educação básica construído na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, que manteve indissociadas as etapas infantil, fundamental e médio. Cada uma com seus objetivos de transmitir conhecimentos básicos (de forma isonômica) a todos os estudantes. E a Lei 13.415 quebrou esse conceito, com consequências graves para as classes populares.
9. É indisfarçável o desejo do governo golpista em promover o Programa EMTI para transformar a escola de nível médio em limite máximo da formação de grande parte da juventude brasileira, ofertando cursos técnicos e impossibilitando, por meio de um currículo reduzido, a entrada da maioria dos jovens no ensino superior. Essa manobra atende aos anseios do capitalismo em dispor de mão de obra minimamente qualificada a baixo custo e, de quebra, “ajuda” o atual governo a distensionar a demanda social por vagas em universidades públicas, estimulando o crescimento da rede privada. Aliás, já está em curso no MEC estudos para transformar os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia em escolas exclusivas de ensino médio, desmistificado enorme retrocesso diante da concepção emancipadora de transformar os IFES e as Universidades em espaços de efetiva oportunidade para as classes populares.
10. Por fim, é preciso debater os efeitos da antirreforma no trabalho pedagógico e na carreira dos profissionais da educação, em especial no magistério. Ao impor profissionais exclusivos para a Coordenação e Gestão das Escolas, como previsto na Portaria n. 727, a gestão democrática e a consequente construção coletiva do projeto político pedagógico das “escolas de referência” correm sérios riscos de serem extintos, criando outras fissuras na LDB. Já o reconhecimento de profissionais com “notório saber” para atuar na área de educação profissional, sem formação de magistério, avança na desregulamentação da profissão e da carreira docentes, já bastante ameaçadas pelos efeitos da reforma Trabalhista que tendem a precarizar o trabalho e a organização sindical da categoria. Por fim, a quebra de isonomia nas condições de trabalho e remuneração dos profissionais lotados nas “escolas de referência” em relação aos demais, gerará conflitos que precisam ser dirimidos no sentido de entender que toda a engrenagem da antirreforma educacional visa a retroceder e aniquilar direitos conquistados durante décadas de lutas.
Pelas razões apresentadas, a CNTE e seus sindicatos filiados convidam a comunidade escolar a debater com profundidade os projetos de implementação do Programa EMTI, em todos os estados da federação, exigindo dos gestores públicos as condições de oferta escolar com qualidade social em todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, garantindo o acesso, a permanência e aprendizagem dos estudantes na escola pública.
O momento exige unidade e ação não apenas dos trabalhadores em educação, mas de toda a sociedade. É preciso contrapor a falsa propaganda de que o EMTI significa avanço para a educação e para os estudantes. Somente conhecendo a fundo o Programa e intervindo em sua fase de implementação é que será possível impedir que mais contrassensos sejam impostos à educação pública brasileira.
O compromisso é de todos nós. E a luta, insistente e teimosamente, continua!
Diretoria Executiva da CNTE
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